Arte e património

3 escritas da história em directo

Quando nos referimos a património referimo-nos a um conjunto de monumentos, documentos, objectos, factos que são aceites por um conjunto de pessoas como fazendo parte da história desse mesmo grupo. E que nesse sentido deve ser preservado.
A arte contemporânea é de uma ordem diferente, é como que um registo da ordem da historiografia. Quando estamos perante uma obra de arte contemporânea colocamos frequentemente a questão: Estaremos perante uma escrita da história?
Do ponto de vista do mercado artístico esta questão é crucial. Como se sabe, o melhor investimento possível para o coleccionador de arte é a arte contemporânea, uma vez que o agente pode comprar a preço baixo um artista emergente para depois o vender ao preço muito alto, quando e se este se tornar conhecido.
A capacidade de descobrir quem fica para a história é desta forma o conhecimento que gera as melhores mais-valias e lucros. A questão da descoberta e do (re)conhecimento é claro entendida em sentido lato, sem ingenuidades e na sua complexidade, uma vez que muitas vezes são os próprios coleccionadores que impulsionam a subida do valor no mercado, pelo simples facto da compra, por serem opinion-makers, por terem influência sobre decision-makers, etc, etc.
Todavia não se quer com isto dizer que a pertinência histórica da obra de arte contemporânea seja uma preocupação ou a motivação da maioria dos artistas plásticos. Pelo contrário os artistas reflectem muitas vezes sobre anseios muito conjunturais e seus contemporâneos que apenas o futuro dirá se a temática permanece referencial. A este propósito falamos de trabalhos datados ou de trabalhos que resistem ao tempo. Mas independentemente das suas qualidades ahistóricas as obras de arte contemporânea são isso mesmo: contemporâneas, do seu tempo. E todos nós já pensámos que há trabalhos que muito embora estejam actualmente datados, esse facto não lhes retira a importância histórica que possam ter tido na altura. Para arriscar um exemplo falaria de On the road de Jack Kerouac, cuja leitura na actualidade exige a postura da leitura de um clássico (com as suas dificuldades), um livro que já não se lê “como um romance”.
À ideia de património de um grupo (património vimaranense, minhoto, português, europeu e por aí fora) também se junta a ideia de património individual ou familiar (num sentido mais jurídico, de propriedade) mas que do ponto de vista da criação artística do artista plástico poderia ser o conjunto da obra numa perspectiva diacrónica. O património individual do artista compõe-se então do que este já fez no passado, isto é, as suas temáticas e as diferentes formas de as abordar (ângulos, materiais, estratégias…), e influencia definitivamente a sua criação presente e futura.
Partindo então do conceito de historiografia enquanto processo de escrita da história vamos debruçarmo-nos sobre obras de arte contemporâneas que reflectem sobre os efeitos da história e sua influência na actualidade. Mais do que um interesse histórico sobre uma temática o que nos interessa é então um interesse contemporâneo sobre algo que tem origem no passado.

Na sequência destas reflexões analisaremos três casos práticos de obras e conjuntos de obras de três artistas contemporâneos portugueses que têm escolhido uma reflexão também política sobre acontecimentos históricos.
Os trabalhos escolhidos para aqui são S de Saudade de Paulo Mendes, alheava de Manuel Santos Maia e Não Ponham Mais Palavras na Minha Boca da minha autoria.
São trabalhos que abordam – de forma diferente – o regime ditatorial de Oliveira Salazar, a guerra colonial e a sua influência na actualidade.
Sobre esta questão não se quer deixar de referir a obra de José Gil  Portugal, Hoje: o Medo de Existir. Embora algumas das peças em análise sejam anteriores a esta obra filosófica elas reflectem uma convergência de pensamento sobre a questão da não-inscrição e a explicação nos longos anos de ditadura de um certo ser português medroso, tristonho e passeísta. O eco de padrões comportamentais e vícios societários continua a ouvir-se agora, no que José Gil resumiu como o medo de existir.
“(…) [O] Portugal de hoje prolonga o antigo regime. A não-inscrição não data de agora, é um velho hábito que vem sobretudo da recusa imposta ao indivíduo de se inscrever. Porque inscrever implica acção, afirmação, decisão com as quais o indivíduo conquista autonomia e sentido para a sua existência. Foi o salazarismo que nos ensinou a irresponsabilidade – reduzindo-nos a crianças, crianças grandes, adultos infantilizados.”
“O medo é o medo do poder, mas também da impotência própria diante do poder. Medo de não saber e de ser desmascarado. Medo de ter medo. Medo de parecer ter medo, de parecer fraco, incapaz, ignorante, medíocre. (…) em Portugal (com uma população e aglomerados populacionais reduzidos ou compostos por pequenos grupos) [o medo] reforça-se e agudiza-se (…) sob o poder extraordinário que entre nós possui a imagem de si. A imagem de si (ideal, imaginária, ditada pela norma não menos imaginária do político-social-moral-psicologicamente correcto) impõe regras de comportamento, interioriza interditos, autocensura o indivíduo. Constitui um limite severo à livre expressão, ao pensamento e à acção livres.”
José Gil vai mais longe afirmando que o medo deve ser considerado “como um sistema que condiciona directa e decisivamente mecanismos macrossociais.”
O país não fala, não mexe, não pensa, não se vê logo não existe.
A criação artística é da ordem do visível, e assim está mais próxima da inscrição. Os temas por ela tratados tornam-se mais audíveis.
À partida ninguém se exprime artisticamente para não ser ouvido (embora haja quem exprimindo-se sem conteúdos apenas se queira ouvir).
Por seu lado a criação que reflecte sobre a história ou o património, mais se inscreve. A que fala sobre a longa noite salazarista, acende as luzes e mostra os monstros que se escondem debaixo da cama. Ela reescreve a história.

Paulo Mendes, S de Saudade (2007-…)

S de Saudade é um projecto em curso que Paulo Mendes tem vindo a mostrar em espaços diferentes e com formas diferentes desde 2007. As peças que vão constituindo este projecto vão construindo-o também. À medida que vai mostrando o ditador Salazar, torna-o visível.
Concentremo-nos em duas destas peças: as telas e as fotografias performativas.
Na primeira exposição de S de Saudade – Retratos da Vida Portuguesa, Paulo Mendes apresenta um conjunto de fotografias impressas em telas e engradadas como se de uma pintura tradicional se tratasse. As fotografias são de locais onde estão pinturas (corredores de museus, acervos de instituições, arquivos) e sobre ela foram atirados um ou outro borrão de tinta. Como o próprio artista afirma, nestes trabalhos “a fotografia e a pintura se complementam em imagens que questionam o papel das artes plásticas na representação e ao serviço do poder político.
O retrato foi sempre um tema recorrente na pintura. Que valor iconográfico e de relevância politica podemos hoje retirar ao olhar para retratos de Salazar e de outras figuras da sociedade portuguesa de diferentes épocas? Ultrapassadas pelo avanço da história essas representações estão agora armazenadas em esquecidos acervos de museu, como adereços de uma peça fora de cena. Abandonados os lugares da sua exposição pública, arrastados pela perda da importância política dos representados ficam agora depositados entre outros retratados actualmente anónimos, entre cartões e máquinas de climatização na tentativa de preservar a representação de uma história pública. Numa sociedade de brandos costumes, este lento apagar da memória corresponde a uma amnésia colectiva.”
As telas de grandes dimensões (de 2mx3m, 2.66mx4m…) ocupam o espaço galerístico como um cenário. Também nós estamos nesse corredor, obrigados a presenciar o que se guarda longe da vista, armazém de ventoinhas e de retratos-homenagem, entre eles o do ditador.
Nas fotografias apresentadas no Museu Nogueira da Silva (S de Saudade – Au Hazard Salazar, 2009) Paulo Mendes dá corpo a Salazar, o Homem Invisível. A série de fotografias chama-se O Senhor S.
Quando olhamos para a personagem na série de fotografias imediatamente nos lembramos da figura de Salazar: da sua roupa, do fato e chapéu pretos, da sua pose, do seu peso, da contenção em geral, do corpo-fachada.
Mas à medida que as fotos se sucedem vemos esse mesmo homem a ler o número da Revista Flama que anuncia sua morte: Salazar Morreu. A identidade da personagem que Paulo Mendes encarna nestas fotografias performativas é ambígua. O Senhor S é Salazar mas é também uma imagem de um homem qualquer do Portugal de então. O corpo-fachada é um corpo-norma: exemplo a seguir, manual de instruções para um modelo único. Impávido e sereno o Senhor S não reage à notícia da sua morte. Porque sabe que o ditadura continua depois dele (historicamente em Marcello Caetano, psico-socialmente no português de hoje…)?
No que respeita as fotografias públicas de Salazar, mesmo se este usou e abusou da fotografia e do cinema durante a sua ditadura, no que respeita a sua própria imagem a estratégia foi a da contenção. Pouquíssimas fotografias de Salazar foram tornadas públicas, sobretudo se tivermos em conta a longevidade da sua vida política, ao contrário dos retratos pintados que proliferavam. Atentemos num conjunto de imagens realizado por Rosa Casaco publicadas no livro Salazar na Intimidade (1954). Estas fotografias são fotografias oficiais cujo nome aparentemente paradoxal (estatuto oficial – estatuto íntimo) é amplamente justificado pelo que chamaríamos agora de marketing político. Muito mais ineficaz fotógrafo que inspector da polícia política Pide/DGS, António Rosa Casaco realiza imagens desprovidas de qualquer conteúdo fotográfico usando as mais básicas, e logo pouco memoráveis, regras da composição e do enquadramento. A fotografia de Salazar no Forte de São João do Estoril de costas com as pernas afastadas, mãos atrás das costas e porte pesado é a de um homem que olha o horizonte num dia de mar calmo e seguro. Posicionado à direita da fotografia o ditador olha para a esquerda, isto é, para o passado. Construindo o presente sobre o passado (glorioso entenda-se) nada há a temer, porque este homem tem os pés bem assentes e nada o abala.
A imagem do ditador – de costas – é isso mesmo, uma imagem.
Ora, como bem nos explica José Gil se não falarmos sobre ele cada vez será mais da ordem do fantástico, do inexplicável e aceitável porque incompreensível, inatingível, deificado. Destino inexorável.
Pelo contrário, com as feições de Paulo Mendes o ditador torna-se actual e bem vivo. Presentifica-se o ditador.

Manuel Santos Maia, alheava (1999-…)

Alheava é também um trabalho de vários anos que questiona as imagens das colónias numa perspectiva pessoal.
Como o próprio Manuel Santos Maia afirma “o projecto pretende abordar o alheamento de Portugal relativamente ao passado  colonial e pós-colonial” num “processo de rememoração” que “reivindica e contraria a simplificação da versão oficial da história”.
Confundindo de forma sistemática informação familiar produzida à época da guerra colonial e à época do retorno, informação familiar produzida actualmente, informação oficial da época e informação actual, Manuel Santos Maia tem vindo a dar visibilidade a uma ferida nacional recente (e pessoal).
Tendo por base materiais como livros, fotografias, objectos, móveis, relíquias, filmes, vozes, discursos, manuais escolares, desenhos, o artista vai abordando a temática usando suportes diferentes (desenho, fotografia, projecção, som, teatro, escultura, instalação de objectos, vitrinas, leituras, performances…).
Para lá da dispersão dos suportes assistimos também à dispersão das mostras. Com efeito alheava é um projecto que já participou em mais de 43 exposições (entre colectivas e individuais), em países como Noruega, Espanha, Bélgica e Estados Unidos da América e em cidades nacionais como o Porto, Lisboa, Coimbra, Lagos, Oeiras, Guimarães, Braga, Santo Tirso, Cascais, entre outras. A dispersão geográfica de alheava como que exige as suas sinalizações num mapa, para não nos perdermos.
“A segunda fase do projecto realizar-se-á após a apresentação da totalidade das mostras da primeira fase e compreende uma viagem a Moçambique, ao país representado no projecto “alheava””.
Mais do que uma viagem (geográfica, temporal, artística, pessoal) alheava é um vaguear. As dispersões e alheamentos acumulam sentidos na confusão típica do estado de espírito de quem está em conflito.
Categorias são criadas, tipos estabelecidos, objectos dispostos e museuficados. São estatutos novos para objectos e imagens antigos que se tentam desta forma rever e interpretar. Lançando mão de uma estratégia arquivística e cumulativa, o artista faz e refaz a história, como quem faz e desfaz as malas.
A mais invisível das épocas da história portuguesa é aqui constantemente mostrada e revista, contra a amnésia colectiva e familiar. Reencena-se a partir de documentos históricos pré-existentes, nitidamente porque a primeira fotografia saiu mal.

Rita Castro Neves, Não Ponham Mais Palavras na Minha Boca, Escola Primária do Bom Sucesso, Porto (1997)

Esta é uma obra site-specific para uma escola pública com a arquitectura típica da ditadura portuguesa – a mesma arquitectura do norte ao sul do país. Na entrada vazia do edifício ecoam vozes de crianças a brincar no recreio. Este é o período de férias e as vozes vêm de colunas de som escondidas no mobiliário. À confusão das vozes junta-se a limpidez da campainha e o ladrar de um cão.
No primeiro andar apenas uma das salas de aula não está fechada à chave. No interior dela: silêncio, e logo a porta que se fecha atrás de nós estrondosamente graças a um mecanismo nela colocado. Agora sós e sem barulho a sala de aula apresenta-se-nos com as suas janelas e mobiliário perfeitamente embrulhadas em tecido branco, cosido à mão com linha branca no local. A disposição das carteiras e cadeiras impõem-se pela rectitude das suas três filas – memória da fila dos maus, dos médios e dos bons. Em cima do quadro negro – agora branco – o crucifixo da escola supostamente laica lembra-nos que afinal a iconografia do Estado Novo ainda está presente.
A obra parte do questionamento da iconografia do Estado Novo na educação e a sua perseverança na contemporaneidade. A educação nacional foi como sabemos uma das prioridades no investimento propagandístico e controlador do estado de espírito no Estado Novo. Mas mais do que isso o crucifixo ainda hoje em 2009 está presente nos locais públicos e oficiais portugueses, em total desrespeito do estado laico que somos e sobretudo dos seus cidadãos. Não é só nas salas de aula das escolas públicas que o crucifixo permanece em 2009, é nos hospitais públicos, nos centros de saúde públicos, nas repartições públicas… A laicização está por fazer, é o lastro do Estado Novo e da Doutrina Social da Igreja Católica.
Ninguém retira os ícones, porque ninguém o quer fazer, ninguém sabe se o pode fazer. O medo tolhe.
A rigidez que a obra aborda e o mal estar que criam não são apenas os da ditadura mas também do sistema educativo.
Como educamos quem? O espaço da sala de aula costurada é o espaço de abandono também, pela referência óbvia à prática antiga de, em momentos de ausência prolongada, cobrir os móveis da casa com lençóis velhos preservando-os do pó. Numa tentativa de controlar a passagem do tempo no espaço.
Uma má memória fechada num quarto vazio expõem-se aqui ao público.

Para lá das claras proximidades e preocupações temáticas dos três projectos são também de realçar outras partilhas.
Em primeiro lugar estes artistas são os três artistas multimédia, que lançam mão dos diferentes média em função dos diferentes espaços e/ou temas. Esta pertença leva-os muitas vezes a mostrar o seu trabalho em espaços não-convencionais no que se revela sempre uma produção mais trabalhosa do que no espaço convencional.
Mas sobretudo parece-me que é de sublinhar que estes três artistas têm desenvolvido regularmente, para lá da sua actividade estritamente artística, actividade curatorial. Intitulando-se de artistas-comissários pretendem contribuir para o panorama expositivo português em geral e para o portuense em particular, organizando, produzindo, publicando e comissariando exposições, festivais, eventos e debates envolvendo vários artistas e incluindo eles próprios.
Esta actividade não é em conjunto, tendo cada um deles os seus próprios projectos. Fazem-no de uma forma não exclusiva, acumulando este tipo de actividade com outras formas de expor.
Nesta forma de se envolver os artistas-comissários apropriam-se das meandros da arte e dos seus sistemas, reformulando critérios de selecção, temáticas, espaços e formas de montagem. A questão das cumplicidades temáticas e geracionais é também exposta nestes projectos, sublinhando-se igualmente a importância das redes afectivas não corporativistas.
Esta atitude é tanto mais importante quanto o país é pequeno. Aqui o meio artístico é muito reduzido e especialmente vulnerável a decisões que lhe são externas. Por outro lado a pequena dimensão do meio da arte cria em Portugal um problema de falta de independência, sendo que muitas decisões e escolhas são tomadas não por um reconhecimento genuíno da qualidade da obra de arte ou do pensamento do artista mas sim por outros interesses que comprometem um julgamento crítico independente. Infelizmente a proliferação de agentes intermédios não veio ajudar esta situação.

Ao longo deste texto abordámos três projectos de arte contemporânea para reflectirmos sobre a ideia de património histórico construído. Vimos aqui como a arte contemporânea pode ser um processo de intervenção, de inscrição, de lutar contra a amnésia colectiva e uma escrita da história em directo. O exemplo dos artistas-comissários é mais uma forma de apropriação dos contextos e das escritas. Tal como este texto também fala da minha obra.

Rita Castro Neves, Agosto 2009

 

Bibliografia

GIL José, Portugal, Hoje: o Medo de Existir, Lisboa, Relógio D’Água Editores, Col. Argumentos, 6ª Reimpressão Março 2005 (1ª Edição Novembro 2004), 150 pp..
MEDEIROS Margarida, Fotografia e narcisismo. O auto-retrato contemporâneo, Lisboa, nº 20, Assírio & Alvim, col. Arte e Produção, 2000, 177 pp..
MENDES Paulo, The best of… Vogue, Porto, Mimesis-Multimédia Lda., Col. Arte Contemporânea Portuguesa, 2002, 48 pp..
PÉREZ Miguel von Hafe (ed.), Propostas da Arte Contemporânea Posição:2007, Porto, Fundação de Serralves/Público, Colecção de Arte Contemporânea Público Serralves, 2007 p. 86-87, 158 pp..

 

Netgrafia

HYPERLINK “http://manuelsantosmaia-alheava.blogspot.com” www.manuelsantosmaia-alheava.blogspot.com
www.manuelsantosmaia.blogspot.com
HYPERLINK “http://www.paulomendes.org” www.paulomendes.org
HYPERLINK “http://www.ritacastroneves.com” www.ritacastroneves.com

GIL José, Portugal, Hoje: o Medo de Existir, Lisboa, Relógio D’Água Editores, Col. Argumentos, 6ª Reimpressão Março 2005 (1ª Edição Novembro 2004), 150 pp..

Idem, p. 17.

Idem, p. 80.

Idem, p. 83.

Curiosa e antiquada expressão.

Não se pode deixar de mencionar aqui um certo retorno às imagens de Salazar de tom leve a que temos assistido ultimamente, bem como um aproveitamento tonto pela parte dos média de um interesse dos portugueses pela figura do ditador. O exemplo francês no que respeita Le Pen, os média e o Partido Socialista Francês de François Mitterand deveria aliás inspirar um pouco mais de reflexão pela parte destes actores sociais. Este retorno às imagens todavia é quase um salto histórico sobre a inscrição que falta fazer, repetindo outras típicas práticas sócio-intelectuais portugueses, como quando alegremente passámos da ditadura para um período de pós-feminismo, sem passar pelo feminismo – justamente uma palavra impronunciável em Portugal.

Até esta altura S de Saudade teve quatro exposições individuais na Galeria Reflexus Arte Contemporânea Retratos da Vida Portuguesa (Porto, Setembro 2007), no In.Transit O passado e o presente (Porto, Março 2008), no Museu do Neo-Realismo Diorama da Nossa História Natural (Vila Franca de Xira, Abril 2008) e no Museu Nogueira da Silva Au hazard Salazar (Braga, Maio 2009).

Texto publicado na folha de sala da exposição e publicado no site do artista em  HYPERLINK “http://paulomendes.org/?pagina=exposicoes/colectivas&accao=ver_exposicao&id_exposicao=5#conteudo” http://paulomendes.org/?pagina=exposicoes/colectivas&accao=ver_exposicao&id_exposicao=5#conteudo (consultado a 28 Julho 2009)

“A invisibilidade constitui o próprio estado de Salazar. Ele é invisível e quer-se como tal. Só raramente se mostra em público e ainda menos em manifestações de massas. A sua pessoa física, a sua presença corporal não se expõem aos olhares (…). José Gil in Salazar: A Retórica da Invisibilidade (1995), citado por Paulo Mendes no seu site. http://paulomendes.org/?pagina=noticias/noticias&accao=ver_noticia&id_noticia=76#conteudo.

Sobre esta questão poderiam aplicar-se aqui os ensinamentos de Margarida Medeiros no capítulo “O retrato pintado e o retrato fotográfico” do seu livro, sobre o carácter sublimatório e iconográfico do retrato pintado por oposição à dessacralização operada pelo retrato fotográfico que por sua vez é um índice. Fotografia e narcisismo O auto-retrato contemporâneo, Lisboa, nº 20, Assírio & Alvim, col. Arte e Produção, 2000, p. 45-55, 177 pp..

Básicas mesmo para a época.

Alheava iniciou-se em 1999 quando Manuel Santos Maia ainda era estudante da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto.

Retirado do texto do artista publicado no seu site e em Propostas da Arte Contemporânea Posição:2007, Miguel von Hafe Pérez (ed.), 2007, Porto, Fundação de Serralves/Público, Colecção de Arte Contemporânea Público Serralves, p.86, 158 pp..

Idem.

Site-specific é um termo anglo-saxónico comummente utilizado a partir dos anos 70 do séc. XX para designar obras de arte que são feitas para a especificidade geográfica, temática, histórica, política, estética de um local.

Durante o Estado Novo as salas de aula das escolas primárias tinham todas, em cima do quadro negro, o crucifixo ladeado por uma fotografia do Presidente da República e do Presidente do Conselho de Ministros Oliveira Salazar. Com o 25 de Abril de 1974 as fotografias partiram mas em muitas escolas públicas os crucifixos ficaram no mesmo sítio.

Artista multimédia é uma tradução literal do termo americano multimedia artist. No Reino Unido é mais comum o termo media artist, que em português não traduz tão bem… Os média podem ser tão diversos quanto a pintura, o desenho, a fotografia, o vídeo, o som, a performance, material de arquivo e objectos pré-existentes. É comum haver uma preocupação – ou pelo menos um enformaçãosite-specific ou de instalação.

Para dar um exemplo pense-se na dificuldade em realizar a peça Não Ponham Mais Palavras na Minha Boca, que tinha que ser feita na escola primária da artista. Pense-se na quantidade de autorizações e convencimentos que foram necessários: da direcção da escola à DREN, passando pela Junta de Freguesia, os calendários a estabelecer uma vez que é um espaço ocupado diariamente, a divulgação da exposição e a realização e produção dos materiais impressos, a permanência no espaço que teve que ser assegurada durante 15 dias, o acesso à escola para a realização da peça que só a costura demorou 3 dias, etc, etc…

Estes projectos incluem também a actividade da Associação Plano XXI (Paulo Mendes, Inês Moreira e Sandra Vieira Jürgens), do brrr – Live Art (eu) e de José Maia (nome que Manuel Santos Maia utiliza enquanto professor, formador, investigador e curador). E isto em espaços como o W.C. Container, In.Transit, Espaço Campanhã, eventos como a Plano XXI Portuguese Contemporary Art, Cinema & Music , UrbanLab – Bienal da Maia 2001, Amorph!99 Performance Art Festival, Brrr _ Festival de Live Art, Dia e Vento, Trama Festival de Artes Performativas e ciclos de conferências como Artistas-Comissários para a Escola Superior Artística do Porto, Encontros do Olhar – A Fotografia e a Arte para o IPF, etc, etc. Para conhecer estes projectos com maior profundidade ver os sites e blogs destes artistas.

Esta vulnerabilidade é também acentuada pelo que José Gil diz ser um muito português “complexo, dito de inferioridade” sobre o que se passa “lá fora” (idem, p. 82). Mas trata-se neste caso também de uma vulnerabilidade económico-financeira (veja-se como as variações na bolsa influenciam os programas culturais das nossas importantes fundações portuguesas), bem como em relação às modas e tendências do mercado artístico internacional (neste aspecto a observação do fenómeno relativamente recente dos leilões de arte contemporânea é um exercício muito curioso sobretudo pela sua volatilidade e tradicionalismo).

O tradicionalismo da maioria dos agentes da arte contemporânea portuguesa é muito curioso, sobretudo nos mais jovens. As escolhas dos jovens comissários e críticos raramente fogem aos nomes já conhecidos.

Revista Veduta