Duas casas

Esta instalação é de duas “casas” arquetípicas, de desenho simples: uma grande e uma pequena. As “casas” com uma estrutura de madeira muito simples são revestidas a tecido – tecido feito, construído, a partir do costurar de várias peças de roupa usadas juntas: camisas, t-shirts, calças, peúgas, cachecóis….

As peças de roupa individuais já usadas por diferentes pessoas e descartadas, ganham uma nova geografia do uso, numa nova lógica combinatória, como se de um encontro de pessoas diferentes se tratasse ou, como se momentos da história pessoal de uma só pessoa se encontrassem num objeto único tornado coeso.

Costurar sabemos é atividade simbólica, e aqui o costurar das várias peças de roupa diferenciadas é um juntar, criar união, fazer sentido, para depois, poder erguer um possível abrigo, em forma de casa. A roupa usada destituída de corpo, também sabemos, tem carga antropológica, histórica (por exemplo, nas inesquecíveis imagens dos montes de roupa de Auschwitz…), artística (Christian Boltanski, Annette Messager…), económica e ecológica (o seu peso contemporâneo na poluição industrial, a sua preocupante descartabilidade).

A roupa usada destituída de corpo, lembra sempre o corpo, pela sua finalidade, pela sua forma; a roupa oca, não é apenas roupa, é roupa-sem-o-seu-corpo, sublinhando ausência.

A matéria desta “casa-Assemblage” – os tecidos – aconchegam, mas também repelem pela evidente realidade de que já estiveram em contacto íntimo com vários corpos, outros corpos, corpos diversos.

Por outro lado, no local da instalação, ao entrarmos para dentro da “casa” re-tornamos à nossa condição de corpos despidos, com roupa por fora.

A casa-roupa, casa-pele interpela também pelas possibilidades que sugere de construção com recurso a matérias tão básicas quanto disponíveis, numa materialização – enquanto imagem-pensamento, imagem-de-uma-ideia, da solução para o problema da (falta de) habitação: pequeno ensaio para uma utopia concretizável.

Abrigo afetivo e depurado, esta “casa” é uma representação metafórica da possibilidade de juntar todos (por referência a todas as pessoas que usaram efetivamente todas as peças de roupa usada) e tudo (os momentos e as histórias que foram vividos com aquelas roupas, as memórias que despoletam nos seus donos). Na dicotomia clássica da História, esta casa assim erigida, com as roupas usadas por vários, é simultaneamente “monumento” e “documento” – mas de uma história anónima.

As casas são duas: uma grande, para um adulto ou um pequeno grupo de adultos, a outra, a pequena, é para uma criança, ou duas, se bem souberem negociar espaço, chegar a acordo.

A casa grande estava dentro de casa, e é assim na sua essência uma redundância: casa para dentro de casa. Mas coloca-se frente a outra, uma mais pequena, que estava no exterior, no pátio, desprotegida, mas mais próxima da sua finalidade.

Esta relação de vizinhança, de proximidade, sugere intimidade na separação: dois corpos separados mas próximos: geograficamente, construtivamente, essencialmente.

A casa pequena, estando no pátio exterior, à chuva e ao vento, foi realizada a partir da junção de gabardines e casacos – idealizada solução, por transposição da matéria “casa” para a matéria “roupa”, uma tectónica para o têxtil. A opção por colocar a casa pequena, a casa mais frágil, no exterior, sublinha a vulnerabilidade a que está sujeito quem vive, sem casa, no espaço público exterior.

Nas duas casas a fonte de luz é uma lâmpada suspensa do teto, lâmpada simples, improvisada, do exterior. O mesmo fio grosso leva a eletricidade às duas casas, como em soluções económicas de recurso, em que se “puxa” a eletricidade do vizinho, ou do poste de iluminação pública. Visualmente – no espaço – as duas casas estão unidas pelo fio e por um fluxo de energia, que é elétrico.

Duas casas arquetípicas, de dimensões diferentes mas escalas próximas, separadas, mas juntas no seu isolamento, na sua originalidade, sugerem reflexão sobre isolamento e fusão.

 

Instalação apresentada em novembro de 2015, no espaço da Mala Voadora no Porto, no âmbito do programa Happy Together, um programa artístico paralelo à conferência do Arquiteto Santiago Cirugeda no ciclo anual de Conferências Fórum do Futuro. Apresentada a 24 e 25 de Setembro de 2016 no Parque do Museu de Arte Contemporânea de Serralves, na Festa de Outono, com colaboração educativa de Matilde Seabra/Talkie Walkie (oficina: Um bolso do tamanho de um segredo).

Duas estruturas de madeira em barrotes de pinho nacional, roupas usadas, fio de algodão, fio elétrico, arame galvanizado, dois casquilhos, duas lâmpadas. Instalação com dois elementos: uma casa com 4m (comprimento) x 2m (largura) x 2,80 (altura) e 1,5m (comprimento) x 1m (largura) x 1,40m (altura). Agradecimento a Daniel Moreira. Todas as fotos pela autora, exceto as duas fotografias com grupos, na Mala Voadora, que são por Daniel Pinheiro/Mala Voadora.