Tempos de Medusa articula-se à volta de uma fotografia de uma condição médica – a Alopecia Areata – em que o cabelo é perdido. É a partir deste lugar vazio (o vazio do cabelo que já lá não está) e da referência à Medusa de Caravaggio, que se constrói uma teia de relações afetivas de rasuras, comparações e obliterações, que tentam visualmente ancorar perda, amor, medo e pertença.
“(Estas imagens) remetem para a dor, o sofrimento, a angústia e, simultaneamente, constituem-se em ironização disso mesmo. São imagens de afinidades sanguíneas e afectivas: desenham árvores de resistência, subsistindo para antes e depois no tempo, a partir de um instante presente que é ficcional quase. Narrativas, enredos imaginários, arquetípicos ou mais comummente efectivos que se desdobram, multiplicam através da capacidade da autora externalizar as suas memórias, as suas expectativas, expurgando-as, delas se ausentando deliberadamente para a elas retornar, talvez.” Fátima Lambert
FICHA TÉCNICA
Várias fotografias encaixilhadas, tamanhos diferentes, 1 fujitran, vídeo em loop, em tablet.
2011 Quase Galeria, Porto. Curadoria: Fátima Lambert.
“…Mas vêm o tempo e a idéia de passado
visitar-te na curva de um jardim.
Vem a recordação, e te penetra
dentro de um cinema, subitamente.
(…)
E depois das memórias vem o tempo
trazer novo sortimento de memórias,
até que, fatigado, te recuses
e não saibas se a vida é ou foi.”
Os intervalos, nas artes do espectáculo, supõem o encerrar/cessar momentâneo de algo e o retomar consequente. Na vida linear de cada pessoa existem intervalos, como lembrou Fernando Pessoa, dizendo-se intervalo de si mesmo…Pois, na vida de cada um existem intervalos identitários que servem para a reconstrução, transfiguração, ausência ou completude...augúrios de continuidade acrescida…Mas, quando a vida cessa, deixa de haver intervalos: somente uma breve carta para um longo adeus…diria Peter Handke. Essa breve carta não necessariamente existe escrita, antes é pensada, desejada a existir por aqueles que permanecem, irrequietos com a certeza da irreversibilidade de fuga, de ausência do outro.
“…Ya no se encantarán mis ojos en tus ojos,
ya no se endulzará junto a ti mi dolor.
Pero hacia donde vaya llevaré tu mirada
y hacia donde camines llevarás mi dolor.”
A fotografia não substitui o real, a presença de alguém. A fotografia é assunção, prenúncio e reverberação da morte – Roland Barthes assinalou, quanto é teatro, encenação e dramaticidade efabulada. O tempo da imagem fotográfica perdura no seu suporte mas não garante a revisitação da pessoa, a sua duração.
“Um mundo de coisas que passam. (…) Tudo muda sem parar. Não há nada estável.”
A memória fotográfica não chega, não consola, não substitui. Ficam os traços familiares, o adivinhar do sorriso esboçado, o olhar que quer engolir o que vê, pressentindo talvez a precariedade das horas. Registam-se posturas mais ou menos artificiosas, detalhes da pele, um sinal no antebraço ou atrás de uma orelha, a prega de uma ironia na boca… o que se queira ou possa ter fixado e saiba conservar. Relembrando Agnès Varda, em depoimento no documentário Janela da Alma, apenas quem ama pode filmar o ser amado daquela forma – no caso, a realizadora comentava a sua intencionalidade, a propósito do registo do actor Jacques Demy… Aí, nem sequer se pensa que as imagens possam mentir, como afirmou Laurent Gervereau, pois se quer decididamente acreditar, fazer com que a persistência actue sobre o afastamento, a falta.
“Uma vez que já nada é pensável para além de mim, farei da minha vida o mais possível.”
A efemeridade de um tempo, de aparência demorada, suspende-se numa imagem, não retornando a existência: nem algures, nunca. “Nevermore, nevermore…” como no poema de Edgar Allan Poe. Nem sequer é questão de saudade; é mesmo ausência irrevogável e intransponível, agindo na silenciosa cativação de imagens-momentos. Nem sequer são lembrança ou recordação: são devaneios, deambulações sem o requinte de flâneries ou wanderers…poéticos ou estéticos. São, com toda propriedade labirintos definitivos, de onde não haja solução.
“Vai-se tornando o tempo
estranhamente longo
à medida que encurta.”
As imagens, presentes nesta mostra individual, remetem para a dor, o sofrimento, a angústia e, simultaneamente, constituem-se em ironização disso mesmo. São imagens de afinidades sanguíneas e afectivas: desenham árvores de resistência, subsistindo para antes e depois no tempo, a partir de um instante presente que é ficcional quase. Narrativas, enredos imaginários, arquetípicos ou mais comummente efectivos que se desdobram, multiplicam através da capacidade da autora externalizar as suas memórias, as suas expectativas, expurgando-as, delas se ausentando deliberadamente para a elas retornar, talvez.
“…Vejo isto apenas o caos
Do teu espelho redondo que organiza tudo
À volta da estrela polar dos teus olhos que estão vazios,
Que nada conhecem, apenas sonham e nada revelam.”
O denominador comum de Tempos de Medusa agrega o mitológico ao factual: a sedução mortífera.
Não é mais a Medusa de Caravaggio fechada na sua redoma de vidro, numa das salas dos Uffizi… O escudo pintado acelera a ofensiva, quase disparando seu olhar para cima de nós. O olhar incide sobre um ponto algures no espaço, de tal forma é alucinado. A visão, na fotografia de Rita C.N. encontra-se na cegueira que apenas o pensamento pode iluminar. Entre imagens de si-mesma que a apresentam e presentificam, há a metáfora que a fotografia tão bem sabe exponencializar. Existem as fotos de outro, garantindo duas linhas na duração: uma que ascende à geração dos pais, outra que define a artista como mãe. Nesses cruzamentos, a transversalidade ontológica configura presenças, obliterando-as, todavia estabelecendo-lhes uma “aura” adivinhada - e portadora de virtuosa lucidez.
Questione-se, talvez, o que seja um retrato, isso é certo. Há que analisar, perguntar-se, tanto quanto nem o próprio se saiba retrato, retratado, susceptível de ser “um” retrato. No olhar que se dirige de um a outro, aquele eu sou ao outro que se supõe seja, o denominador comum estará na grande maioria dos casos no olhar. Esse olhar que habita o rosto, antes desse olhar se exercer, estendendo-se à totalidade de si. Tais são alguns dos tópicos básicos que a antropologia filosófica nos ensina. Mas, nalguns dos registos de identidades concebidos por Rita Castro Neves, a definição convencionalizada de retrato é subvertida ou, pelo menos, interrogada e concretizada em moldes distintivos. Os olhares vagueiam, consoante a dimensão performática – caso do registo da filha, o hieratismo dos troncos nus – caso dos registos do pai e do padrasto. Na cativação de conjunto das mulheres da família, a obliteração da fotografia como objecto fotográfico potencializa e transfigura a intenção originária da imagem.
No âmago destas relações de afinidade familiar e afectiva, o eu reconhece-se no outro, velha questão da identidade versus alteridade. A constituição, o reasseguramento da identidade própria passa pelo outro, pelos outros. Certo, por vezes tal reassseguramento parece-se demais com intranquilidade, com incerteza, com angústia. Ou seja, si mesmo perante os outros consciencializa medos, ansiedades, tensões… mas todas essas vivências certificam que se é, que se está a existir em pleno. Donde e talvez, uma ou outra vez, qualquer um de nós se ter perguntado quanto existe de si nos outros rostos, quando muito os rostos se contemplam ou se ausentam. Questões de afectividade, seja… Mas questões que são, igualmente, do foro estético, fundamentadas em pressupostos fenomenológicos que atravessam os termos que conformam, substancializando a noção de corpo próprio. O reconhecimento do outro começará porventura no rosto (corpo/figura) e o reconhecimento de si mesmo apenas encontra o seu rosto quando utiliza intermediários – sejam estes espelhos, qualquer outra superfície reflectora ou a sua imagem de rosto cativada por um dispositivo capaz de o concretizar em matéria persistente, duradoura.
Estes registos de pessoas possuem uma nominação. São quem efectivamente são, por relacionalidade à autora: através da sedimentação dos laços, como mencionei. Donde, conterem uma certa percentualidade de indexação enquanto prolongamento ou extensão em termos de “auto-retrato”, numa acepção de “auto-presentificação” mais do que “auto-representação”. Não se trata de um procedimento auto-fágico, antes um processo aglutinador porque diferenciador de identidades, papéis e estatutos. Pense-se em aspectos articuláveis a reflexões desenvolvidas numa perspectiva antropológica e cultural, quanto estética e, mesmo, ontológica respeitante à noção de pessoa (em sua individualidade e alteridade, reafirme-se):
“A vida humanizada. Eu havia humanizado demais a vida.
Mas como faço agora? Devo ficar com a visão toda, mesmo que isso signifique ter uma verdade incompreensível? ou dou uma forma ao nada, e este será o meu modo de integrar em mim a minha própria desintegração? Mas estou tão pouco preparada para entender.”
Maria de Fátima Lambert
Lx, Maio 2011
Carlos Drummond de Andrade, “Versos à boca da noite”, Antologia Poética, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2002, p.41
Pablo Neruda, “Farewell”, Crepusculario, Barcelona, deBolsillo, 2003, p.28
Nelson Brissac Peixoto, Cenários em ruínas – a realidade imaginária contemporânea, Lisboa, Gradiva, 2010, p.137
Direcção de Walter Carvalho e João Jardim, 2001.
Peter Handke, Ensaio sobre o dia conseguido, Lisboa, Difel, 1994, p.16
Carlos Drummond de Andrade, “A Família que me dei”, Antologia Poética, Lisboa, Dom Quixote, 2001, p.96
John Ashbery, Auto-retrato num espelho convexo e outros poemas, Lisboa, Relógio d’Água, 1995, pp.170
Clarice Lispector, A Paixão segundo G.H., Lisboa, Relógio d’Água, 2000, pp.11-12