Reza a lenda que Narciso, condenado a mirar-se num espelho de água, depressa se enamorou de si mesmo, perdendo a noção do real ao sublimar um prazer egoísta e isolado. A água, esse espelho aberto às profundezas do eu e ao pensamento especulativo, conduziu Narciso a uma idealização cega e desmesurada, uma eterna e dolorosa fascinação pela sua própria imagem.
Ao partir desse mito, Ovídio concluiu em Metamorphoses III sobre a contradição inerente ao jogo de espelhos da identidade: “vejo(-me), logo não sou”. “Video ergo non sum” é o título da exposição que Rita Castro Neves apresenta no Museu do Neo-Realismo, procurando assim reflectir sobre o impacto de uma paradoxalidade ancestral que ainda hoje nos acompanha, “vejo (vídeo), mas o que vejo e me seduz não o posso possuir”.
Na verdade, a metáfora civilizacional do mito de Narciso concentra em si a evocação de um itinerário assombroso, pois o poder da imagem e os seus efeitos hipnóticos criaram desde há muito uma tradição de saber e de verdade que, aos poucos, tomou para si o domínio da nossa relação com o real. David Santos
Video Ergo Non Sum, 2011, 2 video projeções em loop de 2’40’’ cada, HD, som.
Ciclo The Return of the Real #15, Museu do Neo-Realismo, Vila Franca de Xira. Comissário: David Santos.
Texto de David Santos, sobre o trabalho, “O quotidiano tem destas coisas: gestos, repetições e surpresas” publicado na revista Arca, nº 98-99, Nov-Dez 2011, 116-119 p..
Texto de David Santos, sobre o trabalho, “O quotidiano tem destas coisas: gestos, repetições e surpresas, A Reinvenção do Real. Curadoria e arte contemporânea no Museu do Neo-Realismo, Lisboa, 2014, Documenta Ed, p. 176-183, 303 p. ISBN 978-989-8566-90-4
