Inuit

Na série de fotografias Inuit um casaco invernoso é usado em situações quotidianas por uma figura feminina. Muito embora o casaco-invólucro seja sempre o mesmo, um olhar atento revelará que as mulheres que o incorporam são diferentes. O inusitado está aqui na minúcia.

Encenadas para a câmara, as situações em retrato apenas aparentemente são banais. Uma tensão latente vai-se tornando cada vez mais presente, à medida que as situações se sucedem.

Funcionando como dípticos, ao lado de cada retrato surge uma fotografia de paisagem. A paisagem é simultaneamente um cenário alternativo e uma espécie de espelho ou representação visual do estado de espírito da personagem – numa lógica romântica. Mas também aqui as paisagens enganam.

A coerência estética e composicional do conjunto das imagens aproxima paisagens de locais tão diversos como o Porto, Berlim, Angoulême e Braga, numa geografia nova e descaracterizada.

Mais uma vez se sublinhando a ideia de que a deslocação que aqui tem lugar é a que se passa no interior do casaco – numa

Texto de Eglantina Monteiro para a exposição na Galeria Reflexus (20 set-25 out 2008)

Companhia das Culturas, Castro Marim

15 de Setembro de 08

Querida Rita,

O e-mail que me enviaste com as fotografias da exposição, chamava-se “Rita a Inuit”, que não é propriamente o título da exposição, mas é inspirador.

Enquanto as imagens eram transladadas para o meu computador, cheguei a pensar que abandonaras a matéria com que vinhas urdindo os teus trabalhos: corpos de mulheres em gestualidades encenadas e aparentemente banais, e paisagens cuja luz dos néons, da via pública ou qualquer outra não indicia nem a noite, nem o entardecer, nem as sombras do andamento do dia.

No meu imaginário de antropóloga, não te projectei em nenhuma campanha pelas terras do degelo, mas associei o título às tuas andanças pela Finlândia nos finais dos anos 90, quando expuseste em Helsínquia e organizaste exposições de  artistas finlandesas e portuguesas, cá e lá.

Este período, bem como os teus dois anos de Inglaterra e a tua dupla identidade, portuguesa e francesa, têm uma marca indelével no modo como tratas as tuas personagens, cujas roupagens ou a própria nudez são igualmente próteses.

Levo mais tempo do que o necessário a abrir o attachment com as fotografias, e não posso deixar de pensar que o título não tenha uma ligação com o teu “período finlandês”.

Mesmo que a minoria Inuit que coroa a terra pela Sibéria, Gronelândia, Alasca e o Árctico Canadiano, não tenha qualquer presença nas urbes ocidentais da Finlândia, ou que tu nunca tenhas abeirado as suas terras ou conhecido mestiços, será sempre uma ausência que se pressente.

Tal como aconteceu com as outras minorias culturais do planeta, nos anos 70 os Inuit exigiram ser ouvidos, reivindicando acento nas estruturas políticas, e em 1979 a liberal Dinamarca deu-lhes autonomia interna, pelo menos para alguns sectores.

Foi ainda nos loucos anos 70 que os jovens das cidades industrializadas da Europa e América procuraram junto dos povos que os pais e os avós consideravam primitivos, os símbolos de uma identidade que queriam construir. Com os Inuit foi o fascínio pela poética nómada, a resistência aos desertos gelados do silêncio, as tendas comunitárias feitas em pele e em forma de cúpula, onde a caça é partilhada e as entidades xamânicas convocadas para o festim.

 

E, se os casacos afegãos com os bordados de fio de seda a debruar mangas e badanas fizeram furor junto da população hippy, foi o modelo dos agasalhos polares em pele de focas e renas selvagens, completamente blindados deixando ver apenas o rosto aureolado com o pelo do animal, que permanece na moda de inverno das populações ocidentais. Para além de cumprir, e bem, a função, o casaco é mais uma camada de pele, por cima de outras peles, ou a possibilidade de se suportar a adversidade.

 

Nunca visitei esses nortes, o meu lugar mais a norte é Copenhaga. De resto, só tenho notícias através da literatura, do cinema e sobretudo dos documentários da National Geography e das séries de antropologia. Numa, dedicada aos grandes antropólogos, um filme sobre Franz Boas começava justamente com uma viagem à Terra de Baffin no Canadá Polar nos finais do século XIX, logo no início da sua longa carreira, acompanhando uma equipa de geógrafos que iam cartografar as terras gelificadas e incertas habitadas pelos Inuit. De lá, escreveu longas cartas à futura mulher, ora de deslumbramento, ora arrebatadas pela distância e incompreensão intransponíveis. Tinha ido estudar a influência do meio sobre o modo de vida e pensamento indígenas, e acabou por defender que a história e sobretudo a língua têm um papel muito mais importante do que o meio natural ou as heranças genéticas.

Foi ele quem primeiro percebeu a importância do domínio das línguas no trabalho de campo e, mais do que isso, o papel da língua na actividade inconsciente do espírito. Daí avançou com a ideia da língua como uma espécie de paradigma para o estudo de todos os outros sistemas simbólicos, cujos princípios organizadores normalmente escapam à consciência dos falantes ou pensantes.

 

Nestes teus trabalhos a alteridade é adensada pelo título – ao da mulher apões Inuit – , deslocando, ou melhor clarificando, uma ambiguidade que não se reporta à coisa representada, mas aos registos de representação que criteriosamente escolhes: nem arte, nem documentário social.

Ao trabalhares a partir dos modelos de crença e os modos de fazer, ver e compreender as imagens fotográficas, as tuas fotografias não reflectem só os teus interesses, mas são susceptíveis de rebaterem quem os vê.

Um abraço para todos, para ti um até muito breve,

Eglantina Monteiro

 

 

 

 

 

 

Inuit, 2008, série de 14 fotografias de 60 x 90 cm cada,  Raw / Ink Jet Print. Mostrado no Museu Nogueira da Silva em Braga, na galeria Rosalux, no Storyhotel***** em Berlim, na Galeria Reflexus no Porto, e no Teatro Taborda em Lisboa. Agradecimentos: HP/IPF e Miguel Falcão.