Digamos que o trabalho da fotografia tem caminhos misteriosos. O tema da recolha de imagens de Portugal levou-me a pensar nessa imagem como uma diversidade e como um percurso que inclui o interior do país rural e o litoral do país atlântico, associando a esse interior e contorno fronteiriço, outros interiores, de extremo potencial significante.
Percorrendo o meu próprio arquivo – memória da memória – procurei então esse percurso, encontrando-o o em situações de férias em que, apercebo-me agora (e o percurso do nosso próprio arquivo revelou-se sim como um percurso de (re-)descoberta, mas sobretudo de auto-consciencialização), quase sempre uso filme e apenas a objetiva de 50mm.
O estado de espírito da deslocação geográfica, pelo país, pareceu materializar-se na cor e na densidade dos filmes de 35mm. Como se a flânerie, ou melhor, como se a perceção emotiva do que é flâner, atravessando a matéria do filme, deixasse aí a sua marca. Ficamos na dúvida se o inconsciente é ótico (no sentido Benjaminiano) ou se a inconsciência do flâneur se vai consciencializando. Se Benjamin falava, a propósito de Paris e de Baudelaire, da cidade, para o flâneur, como uma fantasmagoria, não o poderá ser também um país para o seu habitante-viajante?
Nas imagens, os filmes usados, nota-se, por vezes estão estragados, ou não tão perfeitos, fora de prazo ou deslocados do seu tempo (talvez também no sentido em que Agamben fala de contemporaneidade, como implicando uma distância em relação ao seu tempo). O tempo usado em cada fotograma e os diferentes tempos em que fiz as imagens, atravessam o projeto de dar uma imagem, a par de outras, de Portugal. Ainda assim “uma imagem” Portugal – e é verdade, a seleção que opero a partir de arquivo pré-existente das minhas imagens, surpreende-me: no encontro com essa imagem de Portugal, identifico-a como real e verdadeira, ou melhor dizendo, como representativa.
De uma casa de campo no Minho litoral, passando pelo dorso de um burro Mirandês, à “paisagem” que invade uma janela Algarvia, ao gato e golfinhos Açoreanos, o percurso inicia com a imagem de um barco de brincar ao espelho – numa reflexão sobre esse postal de Portugal, em reminiscências de má memória de utilizações ditatoriais de um putativo desígnio histórico – para atravessar solheiras paisagens que se esvaem na representação do mar num filme a desbotar. O fim da série revela-se então como o início da película de 35 mm, como mais um início, de um filme.
Fotografia em filme, 15 imagens de 30 x 44,5 cm e duas caixas de luz em contraplacado marítimo de 50 x 74,5 cm e 30 x 44,5 cm.
Apresentada nos Encontros da Imagem, Happiness a place in the sun, Postcards from Portugal, Casa Rolão, Braga, 2016. Curadora: Ângela Ferreira
