Da desactivada chaminé da antiga Fábrica Moagens Harmonia, chega-nos uma luz que se acende e apaga. No chão do interior da chaminé está enterrada uma caixa de luz com a imagem de uma jovem trabalhadora fabril. Uma das lentes dos seus óculos de massa está partida.
A intermitência da luz não consegue apagar a fixidez e a intensidade do seu olhar frontal.
Texto do catálogo de 4. Moagens Harmonia de Maria do Carmo Serén (1999)
Alice na Fábrica Harmonia
Este é o mundo do não, mundo ao contrário, porque a fábrica Harmonia, agora Museu de estatuto fácil e difícil enquadramento entra definitiva – e historicamente, antes e agora – em conflito com o que resta do quase implosivo palácio do Freixo. Esta justaposição de dois belíssimos exemplos do nosso património, em si mesma garantia de todas as análises elaboradas para a escala de valores estéticos da burguesia oitocentista, deixou marcas de polémica e, naturalmente, determinou a abordagem fotográfica deste levantamento.
Não se pode pensar a fábrica sem pensar o palácio, estão ligados, correspondidos em perspectivas horizontais e enfiamentos de pontos de fuga; (…)
Foco de todo o conflito arquitectónico, a belíssima torre de chaminé de tijolo, erguendo-se por entre os jardins ribeirinhos do deão que pouco os usufruiu, tornou-se, em si mesma, uma atracção para Rita Castro Neves, que introduziu naquela matriz de fogo uma caixa de luz fóssil, iluminando a representação de uma operária, contrapondo o lugar de desejo com o lugar do poder.
Mundo invertido, porque entre aquilo a que chamamos realidade, para nos definirmos e não nos perdermos nesse mesmo mundo, a fábrica Harmonia é o outro lado do espelho, ponto de encontro de passado e futuro, onde o presente é uma passagem que não flui no tempo, mas que se renova e retrai, suspensa como as imagens fotográficas. (…)
Rita Castro Neves tem trabalhado com suportes de todo o tipo, incluindo naturalmente a fotografia. Aqui utiliza uma caixa de luz em alumínio, de 40×60 cm, iluminando uma imagem de mulher jovem, que representa uma operária. Uma luz intermitente cria o vazio de forma quase indetectável e segura o olhar do espectador. A instalação está colocada no interior da chaminé que emerge no patamar do jardim à beira rio.
Ao entrarmos na chaminé, estamos num recinto redondo, quase fechado, que apenas é iluminado pela caixa de luz. É uma sensação de entrada na matriz, reforçada pelo circuito de luz ténue que marca o cimo da construção e acentua o afunilamento do espaço.
A simbologia de regresso à origem, de tempo primeiro, está instaurada. A aculturação tende, então, a legitimar, nesta catacumba que alimentou o fogo da indústria e da subordinação operária, a presença colorida e pregnante da representação da caixa de luz, que estremece como um sistema de alerta. Porque o operariado foi a alma da produção industrial? A carne para canhão da riqueza ou a chama que iluminou o progresso?
Uma consciência histórica vagamente cronológica e o símbolo fálico-pujança-poder da torre que se conjuga com a matriz-forno-operária é uma das armadilhas do discurso do inconsciente. E também o túnel do tempo de Alice, onde ela tem de crescer e diminuir para ser fonte de desejo.(…)
O lugar que a fotografia de autor ocupa neste final de milénio, condensando questões, actualidades e dúvidas sobre o ser e o tempo, está todo aqui, onde o local é apenas o lugar de acolhimento do discurso que lhe é tão alheio como a compreensão que desencadeia.
Maria do Carmo Serén
Sem Título, 1999, obra site-specific para a chaminé industrial da Antiga Fábrica de Moagens Harmonia, exposição colectiva 4. Moagens & Harmonia, Associação para o Museu da Ciência e da Indústria, Porto. Uma fotografia 50×70 cm, negativo cor impresso em Duratran, caixa de luz em caixa protectora em ferro e vidro resistente enterrada no chão, luz néon intermitente.